Ortodoxia e heresia foram dois elementos que digladiaram ao longo da história da Igreja Católica, a primeira representando a preservação dos dogmas e crenças dessa instituição e a segunda, apresentando uma ameaça aos princípios cristãos e às verdades de fé confessados por esta mesma Igreja. Nesse contexto histórico e eclesiástico, ser herege caracterizava algo ruim, enquanto ser ortodoxo correspondia a algo bom e correto.
Como bem aponta o filósofo e teólogo Chesterton (2011), na contemporaneidade e não apenas dentro dos limites do âmbito religioso, os termos ortodoxia e heresia inverteram seus sentidos, ou pelo menos aquilo que exprimiam para a humanidade, de forma que se autodenominar como herege parece configurar algo que deve ser manifesto com orgulho, enquanto aqueles que optam por conservarem princípios ortodoxos, parecem se envergonhar disso.
A motivação para o desenvolvimento desta pesquisa emergiu da mesma percepção apresentada por Chesterton: parece que a contemporaneidade, em seus mais diversos âmbitos, inclusive no filosófico, sofre uma contínua inversão de valores, de modo que as “heresias” atuais aparentam ser um posicionamento correto e verdadeiro por excelência, enquanto as “ortodoxias” dos dias de hoje, não raro, são apontadas como ultrapassadas, rígidas e equivocadas.
Este trabalho não tem como objetivo principal a produção de uma mera análise do impasse entre ortodoxia e heresia e, embora essa questão perpasse o texto de forma veemente e constante, este não é o foco do nosso estudo. Antes, esta pesquisa se debruça sobre um exemplo de defesa à ortodoxia e de demonstração do caráter desviante de duas heresias específicas.
O objeto deste trabalho é a discussão proposta pelo filósofo romano Boécio acerca de quantas seriam as naturezas e as pessoas de Cristo e como se daria a presença desses elementos no Verbo encarnado. Tal discussão é proposta pelo filósofo no tratado Contra Êutiques e Nestório ou Sobre as Duas Naturezas, escrito no ano 512.
Nessa obra, Boécio apresenta as doutrinas de Êutiques e Nestório, dois bispos orientais que se posicionaram distintamente e, segundo o filósofo e a Igreja Católica, equivocadamente quanto ao número de naturezas e pessoas em Cristo. Enquanto Êutiques defendia que Cristo era composto por apenas uma natureza e uma pessoa, Nestório confessava que nele havia duas naturezas e duas pessoas. Tais doutrinas ficaram conhecidas, respectivamente, com os nomes de monofisismo e nestorianismo, e foram condenadas pelos Concílios Ecumênicos de Éfeso (431) e Calcedônia (451) como heresias.
Boécio, no tratado em questão, retoma as doutrinas dos bispos orientais e demonstra o caráter desviante destas teorias, defendendo a concepção da Igreja referente à discussão, isto é, que em Cristo há duas naturezas em uma só pessoa. O filósofo romano fundamenta seus argumentos através da metafísica e, por meio dela, constrói um caminho a fim de refutar as heresias mencionadas e consolidar a profissão de fé que apresenta como a mais acertada e coerente.
Nosso estudo tem por objetivo fazer uma análise dessa obra de Boécio e discorrer sobre o processo construído pelo autor nesse texto, destacando os elementos metafísicos apresentados pelo filósofo, seus argumentos de exposição e refutação das heresias de Êutiques e Nestório e a demonstração da retidão da doutrina católica quanto às naturezas e pessoa de Cristo. Para alcançar tal objetivo, dividimos este trabalho em quatro capítulos, ao longo dos quais nos propomos a discorrer sobre o processo argumentativo feito por Boécio na obra em questão.
O primeiro capítulo possui duas partes: Na primeira, apresentamos um panorama geral do tratado Sobre as Duas Naturezas, abordando aquilo que é discutido por Boécio nesse escrito, bem como as motivações que o levaram a redigir tal obra; na segunda parte, discorremos sobre o contexto histórico-cristológico no qual emanam as heresias de Êutiques e Nestório, dando ênfase aos concílios de Éfeso e Calcedônia, nos quais as doutrinas nestoriana e monofisita foram condenadas. Além disso, abordamos também o Cisma Acaciano, período no qual ocorreram fatos históricos que instigaram o filósofo a redigir seu tratado. O contexto histórico apresentado neste primeiro capítulo permite uma melhor assimilação e compreensão das doutrinas de Êutiques e Nestório, além da contextualização do leitor quanto ao período de redação do texto boeciano.
A partir do segundo capítulo adentramos propriamente no tratado Sobre as Duas Naturezas, e discutimos sobre como Boécio define e desenvolve os conceitos de natureza e pessoa, que são os termos em torno dos quais toda a obra se desenvolve. Além de discorrer sobre esses dois elementos, expomos também as considerações do autor em relação às definições de substância, subsistência, hipóstase, e estar sob. Todas essas definições ajudarão Boécio a demonstrar as incoerências presentes no monofisismo e o nestorianismo ao longo do seu tratado.
O terceiro capítulo deste estudo tem por conteúdo a exposição boeciana das duas heresias mencionadas, bem como o caminho argumentativo traçado pelo filósofo romano para refutá-las e evidenciar o erro presente nelas. Neste capítulo, mostramos como Boécio explica a incoerência de se dizer que Cristo é formado por duas naturezas e duas pessoas, como defendia Nestório, ou por uma só natureza e uma só pessoa, como confessava Êutiques.
A apresentação que Boécio faz da posição da Igreja Católica em relação ao número de naturezas e pessoas em Cristo é de que trata o quarto capítulo da nossa pesquisa. Nessa última parte do trabalho, escrevemos sobre a demonstração boeciana da retidão da doutrina cristã e como o filósofo fundamenta a crença de que Cristo é, de fato, constituído por duas naturezas e uma só pessoa.
É importante ressaltar que Boécio dividiu o Contra Êutiques e Nestório em oito capítulos, mas apenas seis deles foram utilizados no nosso estudo. Por questão de organização de conteúdo, e de foco conceitual e temático, optamos por não abordar os conteúdos dispostos nos capítulos cinco e oito da obra em questão, considerando que, neles, o autor estabelece discussões que fogem daquilo que é o objetivo da nossa pesquisa.
A discussão que pretendemos desenvolver aqui talvez seja apontada como sem sentido na atualidade, por retomar um tema da filosofia clássica, ou por se tratar de uma abordagem metafísica ligada à teologia, ou por evocar elementos que, a princípio, podem não significar muito para o mundo atual. Mas podemos retomar a colocação de Chesterton quanto à inversão contemporânea entre os conceitos de ortodoxia e heresia: considerando que, na atualidade, as posições heréticas são tidas como corretas enquanto a ortodoxia parece ter passado a ocupar uma posição errônea, talvez a postura de Boécio enquanto defensor da ortodoxia tenha algo diferente para ensinar ao homem contemporâneo, relembrando-o, entre ortodoxia e heresia, qual é verdadeiramente correta e por qual das duas realmente se vale a pena lutar.