Maceió, Alagoas, 3 de março, 1936. Um jovem tenente do Exército Brasileiro, sob as ordens do General Newton Cavalcanti, chega à casa de Graciliano Ramos. O relógio marca 19h. Ao longo daquele dia, amigos e parentes haviam alertado o escritor sobre a possibilidade de ser preso. Há duas semanas, ele ainda exercia o cargo de diretor da Instrução Pública de Alagoas, mas foi orientado por Rubem Louleiro, filho do Governador do Estado à época, a se desligar do cargo. Recusou-se a sair por conta própria. Foi demitido.
Naquela noite de março, Graciliano estava elegantemente vestido de terno e gravata, quando o tenente entrou na casa para enquadrar um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. “Que demora, tenente! Desde meio-dia estou à sua espera”, disse Graciliano. “Não é possível!”, espantou-se o oficial. “Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada”, disse o escritor. O tenente então respondeu: “Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer: acho bom levar mais roupa. É um conselho”.
No dia seguinte, Graciliano embarcava em um trem da Great Western, com destino ao Forte das Cinco Pontas, em Recife. Foi então jogado no porão do navio Manaus e levado com outros presos ao presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Sem qualquer processo penal formalizado, o escritor ficou na cadeia durante dez meses. Ele foi solto no dia 13 de janeiro de 1937, sob decisão do Supremo Tribunal Militar.
A experiência na cadeia foi relatada na obra Memórias do Cárcere, publicada postumamente, em 1953. Graciliano morreu de câncer no pulmão, alguns meses antes de ver o livro chegar ao público. A obra estava inacabada, faltando a escrita do último capítulo. Que, segundo o filho do escritor, Ricardo Ramos, teria um aspecto literário.
A questão norteadora que guia a pesquisa aqui apresentada é a seguinte: é possível que uma narrativa memorialística apresente características que a aproximem de uma reportagem?
Parte-se da seguinte hipótese: uma narrativa memorialística pode se aproximar das características de uma reportagem.
O tema do presente trabalho está situado, portanto, nas relações entre Jornalismo e Literatura, mais especificamente no âmbito do Jornalismo Literário, através da aproximação entre memória e reportagem. Essa aproximação, como se verá no desenvolver do trabalho, é possível através de uma ligação entre a noção de memória e o conceito de reportar, que é a essência da reportagem.
O objetivo geral é contribuir para o campo teórico do Jornalismo ao explorar a relevância das Memórias do Cárcere de Graciliano na área do Jornalismo Literário. Os objetivos específicos são: 1) Relacionar o conceito de memória e o conceito de reportar; 2) Explicitar o conceito de livro-reportagem apresentada por Edvaldo Pereira Lima; 3) Comparar o conceito de livro-reportagem-depoimento com a obra Memórias do Cárcere; 4) Identificar os pontos de convergência e divergência entre a obra de Graciliano Ramos e o Jornalismo Literário.
Ao eleger as Memórias do Cárcere como objeto de pesquisa, o presente trabalho pretende demonstrar que, embora seja um relato autobiográfico, a obra possui convergências com o Jornalismo Literário e características que tangenciam o conceito de livro-reportagem.
Esta monografia insere-se na Linha de Pesquisa 1 – Comunicação: sociedade, educação e cultura. Embora trate de questões relacionadas à Teoria do Jornalismo, em especial com relação à caracterização do gênero Jornalismo Literário, o objeto de pesquisa traz contornos de questões relacionadas também a sociedade, educação e cultura. Relaciona-se à sociedade ao tratar de tensões sociais, a violação de direitos humanos e os efeitos do poder totalitário. Relaciona-se com a educação pela relevância dessa obra para entender a Era Vargas. Liga-se à cultura pela figura do escritor, um dos maiores nomes da literatura em Língua Portuguesa e Universal.
O trabalho está organizado da seguinte forma: na seção subsequente, Estado da Arte, levam-se em conta trabalhos que estabelecem uma relação de Graciliano Ramos com o jornalismo a partir das crônicas (GALINA, 2007; SALLA, 2005; 2010), ou pela atuação em redações (COSTA, 2005; MORAES, 2012), como também se apresentam os indícios que apontam possibilidades de ligação dessa obra ao Jornalismo Literário, a partir dos autores que tomamos como referencial teórico (BOSI, 1995; BULHÕES, 2007; CÂNDIDO, 2006a; COSSON, 2007; LIMA, 2009; PENA, 2013). Em seguida, explicitamos nosso método de trabalho, na seção New Criticism e Estudos Culturais, onde será abordada a estratégia metodológica que vamos percorrer e o porquê da escolha da leitura cerrada como forma de abordagem do texto, apesar de suas limitações.
No capítulo um, Memória e Reportagem, levando em conta aspectos biográficos e o contexto da escrita, é apresentada a relação entre esses dois conceitos, a partir da noção de reportar. Além disso, ao aprofundar os indícios que levam a uma leitura de Memórias do Cárcere no campo do Jornalismo Literário, tratamos da problemática da subjetividade envolvendo as narrativas de testemunho, a partir das reflexões de Sarlo (2007) e Benjamin (1994) como também da questão do conceito de Literatura (CÂNDIDO, 2004; CULLER, 1999; EAGLETON, 2003), para posteriormente explorar a aproximação da obra com a noção de livro-reportagem-depoimento, proposta por Lima (2009).
No capítulo dois, Leitura Cerrada, aplica-se o método da Close Reading como instrumento de verificação dos elementos que compõem o texto de Graciliano, com o objetivo de verificar as possibilidades de aproximação de Memórias do Cárcere com livro-reportagem-depoimento e do jornalismo de maneira geral.
Nas considerações finais, apontamos os resultados da nossa reflexão e sugerimos a possibilidade de aproximação de Memórias do Cárcere ao campo do Jornalismo Literário.