Por Alberto Nascimento
“Assim como minha calma, a tênue neblina se dissipa aos poucos. Ali, sobre a grama ainda úmida, sinto o revolver da terra antes mesmo dos primeiros sinais de movimento. Meus olhos então percebem, com horror, o lento eclodir. Da tumba surge, trôpega e triunfante, a mão apodrecida…”
Meu solitário ouvinte tem os olhos voltados para baixo, concentrado. Sei que esse desvio do olhar não é uma tentativa de nublar suas sensações para dar mais atenção àquilo que ouve. Não, eu conheço bem meu amigo e sei como aqueles malditos olhos de desenhista funcionam. Suas pupilas, decoradas por íris negras feito a infusão que agora admiram, estão tão preocupadas com os padrões da espuma perene na xícara que nada do que eu diga penetrará sua atenção.
Interrompo a leitura e, possuído pela afronta, seleciono cuidadosamente uma praga para proferir. O silêncio faz com o único componente de minha plateia erga os olhos para mim, provando que eu estava errado sobre o quão atento ele estava a minha narrativa.
Com o cenho franzido, meu amigo me encara, balança lentamente a cabeça em negativa e diz:
– É… sei não…
Fecho meu olhos angustiado. Mais de uma vez esses três monossílabos foram-me despretensiosamente pronunciados. O que vem a seguir é sempre a mesma coisa.
– Eu até gosto da sua preocupação com os detalhes. Faz com que eu imagine a cena direitinho. Só que deixa o ritmo da coisa toda chato pra cacete. Ia ser ótimo trabalhar com um roteiro assim, eu ia saber certinho o que desenhar, sem precisar pedir direcionamento. Mas ler um conto, nem fuden…
– Entendi! – interrompo-o, ríspido.
– É o que eu sempre falo de tudo o que você escreve: funcionaria melhor em quadrinhos.
O mesmo verso vil de sempre! Quadrinhos! Não sei o que faz com que eu insista em colher a opinião deste anencéfalo, quando tudo o que ele quer é desenhar e reduzir minha fina prosa.
Ergo a mão, por um instante gesticulo ao acaso para, enfim, entregar-lhe meu dedo médio em riste. Ele ri do gesto.
– Olha para essa cena. Essa sua reação, desenhada em três quadros, ficaria incrível!
Ao contrário de meu amigo, que optou por beber algo estimulante durante minha leitura, decidi acompanhá-la com uma cerveja. Enquanto digiro sua proposta estapafúrdia, tomo um longo gole do fermentado. O frio que desce pela minha garganta invade meu corpo e me tranquiliza. A leve carbonatação massageia minha língua, enquanto a amargor me transporta para um mundo onde nada além daquele intenso sabor importa.
– Às vezes eu sinto que, escrevendo, você consegue deixar até cerveja sem graça. – ele diz.
Coloco o copo sobre a mesa com certa violência. Encaro os olhos negros do meu amigo pensando como pode ser tão difícil fazer alguém compreender o cuidado que tenho com a língua. Penso em defender meu estilo, mas com que palavras? Cada vocábulo que usaria em minha argumentação seria rapidamente abjurado por meu herético interlocutor. Revolta-me o fato de que ele, um simplório desenhista, consiga com palavras tão chulas discursar com muito mais argúcia que eu. Sei que ele apenas o faz por possuir esse zelo impar pela palavra: caso possuísse um respeito mínimo por aquilo que diz, selecionaria com mais cuidado seus argumentos. Resta-me, apenas como escudo, um silêncio profundo e veemente.
– Esse tempo que você está pensando, quieto, eu desenharia em dois quadros. Bastava repetir o mesmo desenho duas vezes, sem nenhum balão, que a ideia de reflexão profunda ia ficar clara. Num conto, ia ser um parágrafo longo e chato.
– O que você falha em compreender, meu caro – digo perplexo com a insistência dele em me ofender – é que nunca um desenho torpe conseguiria transmitir a mesma complexidade que algumas dúzias de palavras bem escolhidas.
Sério, ele me encara sem dizer nada. Levanta-se de supetão e vai até sua estante, onde mantém atulhados seus encadernados heréticos. Enquanto encara sua coleção de quadrinhos, começa a declamar algo de maneira pontual e sóbria.
“Sobre o frio asfalto novayorkino repousa o botton amarelo-canário. A pequena figura circular tem desenhada em si um simples e inocente sorriso. Contudo, não há inocência sobre o asfalto; cercado de sangue, o pequeno pedaço de alumínio tem sua estampa cruelmente maculada por uma singular gota do líquido vital.”
Ele ergue a mão para a estante e pega um volume grosso. Volta para mesa repousa o imodesto tomo diante de mim. Watchmen, um dos poucos gibis que já li. Admito ter ficado admirado com tal obra, mas certas flores dependem do mais fétido esterco para germinar com sucesso.
– Página 1, quadro 1. Abre aí. – a voz dele soa imperiosa, e me vejo abrindo o encadernado antes mesmo de refletir a ordem.
Ali, entendo o argumento. A breve narração do meu amigo não foi nada além do que uma pantomima, uma sátira da minha forma de narrar. Na primeira página, num único quadro, o desenho do botton solitário, transmite muito mais intensidade do que qualquer parágrafo seria capaz.
A ilustração me prende. Percebo que meu amigo desenha algo em uma folha de sulfite, mas não consigo mover meus olhos da singular imagem de abertura daquele gibi.
Percebo-me derrotado.
– Olha isso. – diz meu amigo, ainda atento ao desenho. Sua mão esquerda avança as páginas do gibi até os apêndices, onde se encontra uma reprodução do roteiro do quadrinho. – É detalhista, do jeito que você escreve. Gerou um ótimo quadrinho, mas seria um porre de se ler.
Leio atentamente, e vejo o quão cuidadoso o autor foi para cada quadro. Ainda me habita certa resistência, mas meu espírito começa a admitir a validade daquela forma de produção.
Estou no meio da primeira página do roteiro quando minha visão é impedida pelo desenho. Com o descaso que lhe é natural, meu desenhista exibe o primeiro rascunho de nossa futura obra. No sulfite, vejo triunfante uma mão podre erguer-se da terra.